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29 de nov. de 2011

Até quando, Senhor? Clamor, teologia e agenda missional

Um texto de Júlio Zabatiero, para nossa re-flexão.
Um clamor
O título deste artigo expressa uma súplica clamorosa. É também uma citação parcial. A locução interrogativa “até quando” se encontra cinco vezes no Novo Testamento (Mt 17,17 = Mc 9,19 = Lc 9,41; Jo 10,24 e Ap 6,10 na versão de Almeida RAB) e expressa, sempre, uma consternação, uma ansiedade, um desejo de realização de algo que se espera. Nas passagens paralelas dos Sinóticos, a pergunta é feita por Jesus, frustrado pela incompreensão e incredulidade de seus compatriotas judeus, ansioso para cumprir sua missão e voltar ao Pai. Em João, os judeus perguntam, ansiosos, a Jesus, até quando ele manteria em suspense a revelação de sua identidade. Em Ap 6,10 a angústia de quem espera o juízo salvífico e vindicativo de Deus é expressa, pois parece que Deus tarda demais.

Neste artigo, o “até quando” expressa um pacote de emoções. Por um lado, emoções doloridas de frustração, consternação, ansiedade, quase desesperança; por outro, emoções animadoras de expectativa e esperança. Frustração, pois após quase trinta anos de trabalho teológico e missional de várias pessoas em diversos rincões das igrejas evangélicas no Brasil — e na América Latina, embora meu foco aqui recaia sobre o território latino-americano de fala portuguesa—, nós ainda temos de nos perguntar “até quando” a agenda das igrejas, movimentos e instituições norte-atlânticas irão determinar a nossa agenda pastoral, missional e teológica. Expectativa e esperança porque, apesar da mentalidade subalterna e dependente ainda predominar nos meios evangélicos brasileiros, sinais de liberdade e maturidade despontam aqui e acolá.
Igreja com propósitos, desenvolvimento natural, igreja emergente, igreja em células, G-12, teologia da prosperidade, fundamentalismo, etc., continuam dando as cartas na visão de pastorado, missão e teologia das igrejas locais, movimentos e instituições evangélicas do Oiapoque ao Chuí. Obras traduzidas continuam dando as cartas nas editoras evangélicas, tanto em termos de livros devocionais, quanto acadêmicos. Até mesmo obras de informação teológica básica são traduzidas, ao invés das editoras investirem nas teólogas e teólogos brasileiros que se esforçam nas escolas de teologia, ganhando baixos salários, e tendo de ouvir de editores “não há dinheiro” — se podem pagar tradutores, por que não podem pagar escritores? Na maioria das escolas de teologia, das mais diversas tendências, o currículo ainda é mera atualização dos currículos norte-atlânticos dos inícios do século XX. Os projetos pedagógicos, apenas implícitos na absoluta maioria das escolas, ainda reproduzem arcaicas pedagogias e ementas norte-atlânticas. E agora, com a presença do MEC, muitas escolas teológicas já não sabem nem mais a que servem — se continuam formando quadros para as instituições eclesiásticas, ou se passarão a formar quadros para o mundo acadêmico ou para uma sociedade difusa que poderia empregar teólogos. As agendas dos encontros, simpósios, consultas e congressos continuam impregnadas e subalternas aos temas e preletores das discussões norte-atlânticas (até a “missão integral”, para meu desalento, virou moda — e está se tornando ortodoxia — ai de mim! graças à legitimidade que o tema recebe de movimentos e instituições da direita neoliberal e fundamentalista primeiro-mundista, e é objeto de reflexão até de paladinos do fundamentalismo norte-americano no Brasil.) Até quando, Senhor?

Chega, porém, de frustração, consternação, ansiedade, quase depressão. Pois, afinal de contas, o que mais importa não são as nossas mazelas — elas importam para os noticiários e programas pseudo-jornalísticos que não conseguem enxergar um palmo adiante do nariz da conta bancária. Interessam-me muito mais os sinais de esperança e é a partir de alguns desses sinais de esperança que desejo compartilhar com vocês as reflexões que vêm a seguir. Me anima ver pastoras e pastores que, sem “nome” pessoal ou para o seu “modelo” de ministério, fazem pastorado e missão seguindo os passos de Jesus Cristo (como isso não dá “ibope”, esses ministérios não aparecem na TV, não viram livros, não se transformam em empresas multinacionais) — e não são dois ou três, são dezenas (e falo apenas dos que conheço, que certamente são uma ínfima parcela das igrejas e ministérios que seguem na mesma direção). Me anima ver jovens escrevendo e conseguindo publicar livros de teologia em editoras evangélicas, ou católicas, indo além das velhas perguntas e respostas, buscando novos caminhos, propondo novas possibilidades. Me anima ter visto mais de duzentas pessoas reunidas no acampamento de uma “pequena” igreja batista nas consultas teológicas do núcleo nordeste da FTL-B. Me anima ver gente em Curitiba, Belo Horizonte e São Paulo tentando ressuscitar núcleos da FTL-B. Me anima ver revistas, impressas ou online, trazendo a público as questões que deveriam nortear a nossa agenda brasileira, não-bairrista, não-xenófoba, mas inclusiva, antenada globalmente, mas não subordinada às prioridades de terras norte-atlânticas ou asiáticas de onde emana o Capital (ou será Mamom?). É a partir deste tipo de sinais de esperança que desejo escrever.
Teologia se faz a partir do clamor
Eu sei, eu sei! Você deve estar pensando: “Teologia não se faz a partir da Palavra de Deus?”. Não, companheiros e companheiras. Teologia que se faz “a partir da Palavra” é fundamentalismo doutrinário ingênuo ou mal-intencionado (depende de quem escreve ou fala). No meu primeiro ano de seminarista, aprendi de meu querido amigo e professor de Sistemática que a Bíblia é a fonte da teologia, mas a filosofia é a “bomba” (torneira) que dá forma conceitual aos “não-conceitos” que extraímos das Escrituras (parece que a Bíblia é a fonte da verdade, mas, no frigir dos ovos, uma determinada lógica filosófica é o critério da verdade). Aliás, você não se espanta com o racionalismo fundamentalista? Incrível! Fundamentalistas juram de pés juntos que a Bíblia é inerrante, mas só quando conseguem provar, cientificamente, que ela é verdadeira. Eu sempre me admirei dessa faceta racionalista do fundamentalismo, desde que a descobri (cá entre nós, e só entre nós — se a Bíblia dissesse que o Jonas engoliu uma baleia, eu ainda ia ficar com a Bíblia, mesmo sabendo que nenhum Jonas, por mais gordinho que seja, consegue engolir uma baleia. Isto não é pior do que fundamentalismo? Quem tem olhos para ler, leia.)
Não. Teologia não se faz a partir da Palavra. Teologia se faz em submissão à Palavra (até eu me espantei com esta frase, tão fundamentalista, não parece?). Teologia só pode ser submissa à Palavra de Deus (que é Cristo [Jo 1,1ss] nossa! Agora parece um texto barthiano), se for feita a partir do clamor das pessoas que sofrem sob a dominação do pecado. Precisamos voltar a nossa atenção ao livro do Êxodo — Deus ouve o clamor (2,24; 3,7; etc.) dos hebreus e hebréias subjugados pelo Império vétero-oriental do Egito (sabia, tinha de vir a Teologia da Libertação). Precisamos voltar nossos olhos aos Salmos, em que a maioria das orações são expressões de clamor esperançoso (e.g. 9; 10 — agora parece espiritualidade do coração — e chega de rótulos e de fronteiras!). Precisamos voltar nossos olhos ao testemunho evangélico acerca de Cristo, que veio ao nosso mundo porque ouviu o clamor de pecadores. Precisamos reler Paulo, que nos ensina que todo aquele que clamar será salvo (Rm 10,12-14 — mas as traduções, mal-acostumadas, traduzem “invocar” ao invés de “clamar”). Precisamos reler o Apocalipse, pois nele se dá testemunho do Deus que ouve o clamor das pessoas que esperam a consumação da salvação (e não mais ler o Apocalipse como um relato prenunciatório das desgraças que sobrevirão à humanidade).

Teologia se faz a partir do clamor, pois quem não consegue ouvir o clamor de quem sofre, também não consegue ouvir a Palavra que Deus fala. Teologia é ato missionário. Teologia é ato devocional. Teologia é ato ético. Teologia é o movimento de corpos cujos sentidos estão sintonizados nos sentidos de Deus — que vê o sofrimento, ouve o clamor, toca os doentes, sofre o gosto amargo da morte na cruz, sente o acre cheiro da morte, mas morte que pode ser transformada em vida. Corpos que se movimentam em direção a quem sofre, para abraçar, amparar, ajudar, para sofrer junto — mas como imitar o Messias da compaixão e paixão, se é tão mais atraente o Cristo do sucesso e da fama? A teologia não deveria ser academicamente sólida e inovadora? É claro que sim! Mas não de acordo com os padrões seculares da academia. Os padrões acadêmicos da teologia devem ser ditados e mensurados pelas pessoas que clamam. Que Sesu, Capes, CNPq* e similares façam seu trabalho. Precisamos deles para ter qualidade institucional e técnica, e alguma imparcialidade no jogo da produção do saber. Mas que eles não ditem as normas e critérios do fazer teológico. Enquanto houver uma criança morrendo por falta de comida, uma pessoa idosa abandonada, um pai desesperado por não poder sustentar sua famíla, u’a mãe chorando por não poder enxugar as lágrimas de sua filha... Enquanto houver clamor, será esse clamor o critério de qualidade e de validade da teologia. Se igrejas, fundações, autarquias, doutores e ministérios, governamentais ou religiosos não concordarem, pior para eles (e olha que eu sei o quão difícil é ser aprovado pelas autoridades acadêmicas, teológicas e eclesiásticas, e quão fugaz é essa aprovação).
Mas o que isto tem a ver com o “até quando” e a “brasilidade”? É que a agenda primeiro-mundista não deixa a gente ouvir o grito do vizinho. É que a gente só consegue ouvir e entender o clamor das vítimas “globais” depois de ouvirmos o gemido de quem está ao nosso lado, perto de nós. Ah! Como é fácil ajudar os miseráveis que não precisamos ver, ouvir, cheirar, tocar. Até Deus, para ouvir bem o clamor da humanidade sofredora, desceu. Desceu tão fundo que chegou ao fundo do poço, não para subir sozinho, mas para nos fazer subir com Ela (por que “Ele” é tão “natural”?). Só ouve o clamor quem desce de seu pedestal, púlpito, cátedra, conforto (etc.) e enxerga o sofrimento abaixo dele. Só ouve o clamor quem não empurra a sujeira para debaixo do tapete, a fim de não precisar vê-la. Só ouve o clamor quem não se esconde atrás de estatísticas e estratégias, tendências e conjunturas, mercados e poderes.

Clamores e a agenda missional-teológica
Vou expor, a seguir, os clamores que tenho conseguido ouvir. Note bem a primeira pessoa do singular — ela indica limitações. Ninguém consegue ouvir todos os clamores; por mais que a gente tente, sempre se nos escapa algo. Espero, apenas, que não tenham me escapado os clamores mais gritantes, mais importantes, mais óbvios aos ouvidos de Deus. Note bem as limitações: não farei uma análise do Brasil contemporâneo a fim de determinar a agenda teológica de evangélicos, evangelicais, protestantes, pós-evangélicos, católicos ou seja lá de quem for a agenda. Estou apenas apresentando a minha agenda, com todas as limitações derivadas do fato de ser minha. Porém, ela só deixará de ser minha, para ser nossa, se eu comunicá-la e ela for criticada e respondida. Quem quiser ouvir e participar, fique à vontade! Uma última nota sobre o fato de ser minha — é pessoal, mas não privada, nem individualista. Para ouvir os clamores do mundo, a gente precisa ouvir a família de Deus, o povo de Deus — que inclui gente do “mundo” e gente da “igreja”. É minha, por que não posso responsabilizar a nenhuma das pessoas que li, ouvi ou vi, pelos meus limites.

Aprendi, lendo a Bíblia e estudando a teoria crítica (de Frankfurt — teologia brasileira não é xenófoba), que toda crítica deve começar como uma autocrítica (Jorge Barro e eu escrevemos juntos, há um tempão, um livrinho sobre discernimento espiritual que dizia assim: o primeiro passo do discernimento é o autodiscernimento). Comecemos então com nossa casa — nós evangélicos (ou evangelicais? Ou protestantes? Dúvida atordoante ou libertadora?) temos nos ufanado de nosso crescimento numérico, de nossa presença na mídia, de nossa participação no Estado, etc. De fato, há motivos para celebrar, não sou masoquista. Porém, o crescimento numérico não tem sido acompanhado de crescimento no discipulado, de modo que temos milhares de UTIs pediátricas chamadas de igrejas. A nossa presença na mídia não difere em quase nada da presença “mundana” na mídia. E o mesmo vale para nossa participação no Estado (salvo raras exceções) — nós também somos clientelistas, privatistas, patrimonialistas. Parece-me que os limites de nossa participação pública são a face expressa dos limites de nossa falta de discipulado, de nosso pobre arremedo de espiritualidade.

Leciono teologia há 32 anos e nunca tive tantos estudantes analfabetos de Bíblia (e tenho colaborado com escolas de teologia em todos os cantos do território nacional). Estudantes que não sabem sequer achar alguns livros na Bíblia. Estudantes que nunca leram a Bíblia inteira. Estudantes que nunca questionaram a interpretação mirabolante de textos bíblicos nos sermões. É claro, não é possível discipular consumistas. Quando o Evangelho se reduz a um evangelhozinho neoliberal de apólice de seguro contra o fogo do inferno, e garantia para viver mundanamente sob a pretensa bênção de Deus, que se pode esperar da ação pública das igrejas e seus membros? É claro, quando discipuladores são meros animadores de auditório, que se pode esperar dos corpos sentados nos bancos dos templos? Onde o discernimento?

Obviamente, há muitas e belas exceções, mas agora é hora de autodiscernimento dos nossos limites. Meu foco agora se estreita para o saber religioso cristão que produzimos. Para irmos além do consumismo e entrarmos no mundo do discipulado, temos de ser libertados do fundamentalismo. Tenho lido artigos, textos e livros de muita gente interessante e criativa em nosso meio evangélico — e tenho aprendido muito. Mas também me espanto como o vício do argumento fundamentalista biblicista ainda é forte entre nós — progressistas, evangelicais, ecumênicos, etc. (só gente “boa”). Vira e mexe aparece um argumento mais ou menos assim: “Está escrito na Bíblia; então fazer ‘x’ é bíblico. Se é bíblico, é de Deus; temos de fazer”. Muita coisa está escrita na Bíblia. Por exemplo: está escrito que a mulher menstruada é impura — mas isso não justifica o sexismo. Está escrito que os descendentes de Cam foram amaldiçoados — mas isso não justifica o racismo. Está escrito que os inimigos de Israel deveriam ser exterminados — mas isso não justifica o genocídio, nem qualquer tipo de violência. Não basta, portanto, dizer que “está na Bíblia”, logo a gente tem de fazer — especialmente quando o que se propõe fazer é bom mesmo! As lutas do século XXI não são “bíblicas”, como se não houvesse diferença entre nossas lutas e as lutas do povo de Deus no passado.

A Bíblia propõe valores, e não “movimentos” ou “lutas” específicas. Por exemplo: a luta feminista contra o sexismo é legítima, independentemente de perfeição dos movimentos feministas (minha tradição calvinista me faz lembrar que tudo o que fazemos é imperfeito), mas a luta feminista não é “bíblica” — é “bíblico” o valor: “homens e mulheres têm a mesma dignidade diante de Deus, como criaturas igualmente à sua imagem e semelhança”. Esse valor deveria nos fazer engajar, homens e mulheres, na luta contra todo e qualquer tipo de discriminação contra as mulheres. Muitas líderes dos movimentos feministas têm destacado, com ampla razão, os limites das culturas quiriárquicas (ou patriarcais) dos textos bíblicos, de modo que não devemos ser ingênuos em nossa argumentação exegética. O mesmo se aplica a outras lutas: a luta contra o racismo, a luta contra o empobrecimento, a luta contra a discriminação de pessoas idosas, a luta contra a homofobia, etc. Enfim, a Bíblia é uma ampla biblioteca que demanda interpretação. Não basta dizer que ela é a Palavra de Deus inspirada, nem que é infalível, ou inerrante. É preciso interpretá-la. E quem a interpreta somos nós, e nós não somos inspirados, infalíveis, nem inerrantes (embora às vezes pensemos que sejamos).

Saindo dos arraiais eclesiásticos, nossa agenda deveria estar atenta a muitos clamores. De novo, dentro dos meus limites, aponto alguns (sem qualquer ordem hierárquica ou de planejamento). O clamor das criaturas divinas excluídas continua sendo o mais alto que meus ouvidos conseguem captar. A parte não-humana da criação divina clama, e clama bem alto, embora durante muito tempo o grito de outros excluídos, pertencentes à parte humana da criação, tenha abafado o clamor da “natureza”. Há que ouvir o clamor de todas as pessoas e criaturas excluídas. Esse é o que estou ouvindo mais nitidamente, por que é, até onde consigo ouvir, o mais universal dos clamores, e um clamor que na teologia e na missão latino-americanas não recebeu ainda, me parece, a devida atenção. Ainda somos por demais antropocêntricos — para não dizer eclesiocêntricos. A natureza que geme, especialmente alto é o grito das águas que consumimos com imenso desperdício e poluímos impensadamente, não nos impede de ouvir o gemido das grandes multidões que o capitalismo neoliberal impede de ter uma vida minimamente digna. Estou contente porque o grau de miséria e exclusão em nosso país tem diminuído na última década; mas ainda há tanta gente excluída que clama!

O Brasil clama. Ouço um clamor algo que indistinto — não temos projeto nacional. Os projetos particulares, partidários, falam mais alto do que o projeto comum de nossa adolescente democracia. Em ano de eleição, então, esse clamor me parece mais alto. É claro que os projetos parciais são importantes e temos de fazer nossas escolhas parciais, partidárias e limitadas. Mas os projetos parciais precisam servir a um bem comum. O grito do Brasil assim me chega aos ouvidos: cidadania, cidadania, precisamos de cidadania. Cidadania demanda sacrifício pessoal em prol do benefício do outro, a fim de que ninguém fique “de fora”. Mas, no Brasil, ainda continuamos esperando os messias governantes que irão mudar a face da nação. Se nossa esperança é deste mundo, parafraseando Paulo, quão pobre é nossa esperança. Nenhum governante resolve os problemas da nação. Ou nós assumimos a cidadania e, arregaçando as mangas, trabalhamos juntos para construir o Brasil, ou os partidos continuarão construindo pequenos brasis à sua imagem e semelhança. Evangélicos ainda não sabem bem em quem devem votar, muitos de nós ainda acreditam que devem votar “em irmão” — ainda não aprendemos a cidadania.

Crianças, pessoas idosas, povos indígenas e pessoas portadoras de necessidades especiais clamam. Como “imprestáveis” para o capitalismo, o seu clamor é constantemente abafado, mesmo que tenhamos, no Brasil, estatutos e “políticas públicas” muito bem elaboradas. Das leis aos investimentos, porém, há uma longa distância. Dos investimentos financeiros aos compromissos pessoais, sociais e eclesiais também há outra grande distância. Adolescentes e jovens também clamam, embora o seu clamor seja um tanto quanto diferente do das crianças, idosos e pessoas portadoras de necessidades especiais. Adolescentes e jovens clamam por que são as principais vítimas do consumismo neoliberal, da falência da educação formal — privada e pública —, da falta de perspectiva para o futuro, a não ser o mero, banal e mortal sonho de “ganhar dinheiro”. Suas tribos clamam, mas ainda muitos de nós esperamos que a “garotada” fique do jeitinho padrão da classe média para poder entrar na igreja pela porta da frente. Antigamente, nossos cultos eram imitações dos cultos europeus e norte-americanos e seus hinários. Atualmente, são imitações do padrão global. Imitação por imitação, antigamente pelo menos as letras dos cânticos tinham alguma consistência e a ordem do culto alguma lógica litúrgica.
Vítimas clamam. Ouço dois tipos de vítimas. Vítimas de um trânsito absurdo, criado por motoristas (homens e mulheres, muito mais os homens do que as mulheres, apesar do proverbial dito machista de que mulheres dirigem mal) que se consideram “donos do pedaço”, pilotos de F1 em avenidas cheias, estradas esburacadas, ruas estreitas. Motoristas que, para ganhar dois ou três segundos, se transformam em costureiros do asfalto, sem sequer considerar que podem se tornar assassinos em um ínfimo descuido. Motociclistas que, por prazer, ou pela necessidade de ganhar a vida, perdem-na ao praticar malabarismos impensáveis, totalmente esquecidos das regras mais elementares do uso do espaço comum. Em média, morrem anualmente cerca de 30 mil pessoas no Brasil por causa do trânsito, fora as pessoas feridas e as famílias enlutadas. Como ouvir esse clamor, se mesmo evangélicos dirigem como pessoas mundanas, como se Deus desaparecesse da face da terra quando estamos manejando uma “arma”, isto é, um carro?

Ouço o clamor das vítimas da violência estruturada do capitalismo e seus diversos parceiros, voluntários, inimigos, ou de outro tipo. Vítimas que vivem, desumanizadas, em penitenciárias, presídios, cadeias, jaulas. Como ouvir o clamor do preso se os “Ratinhos” das TVs berram o tempo todo clamando ao povo que peça mais armas, mais polícia, mais cadeia, mais castigo? Como ouvir o clamor de pessoas tratadas como lixo, habitando meros dois ou três metros quadrados, dividindo o espaço para 20 com 300, se nós os consideramos bandidos, menos do que humanos, incapazes de diferenciar entre um crime e outro? Como ouvir o clamor das famílias dos prisioneiros, se eles são transformados em anônimas estatísticas, sem rosto, sem família, sem humanidade? Como ouvir o clamor dessas vítimas, se já as condenamos antes de qualquer julgamento, em nome de uma pretensa justiça, que nada mais é do que sentimento de vingança e afã de se ver livre da incômoda presença da marginalidade que revela diariamente as mazelas do capitalismo, este sim o maior criminoso de nossos dias? Até quando, nós civilizados e cristãos ocidentais iremos suportar o desumano sistema carcerário que todo mundo sabe que não funciona, a não ser como Universidade do crime? “Ah, reverendo, bandido merece castigo!” frase que ouvi mais de uma vez, e a que sempre respondo: “estive preso e me visitaste”...

Mulheres clamam. Negros clamam. Mulheres e negros já se articularam melhor do que outros grupos de pessoas vítimas de discriminação. E seu clamor já está sendo mais ouvido nas igrejas — o clamor das mulheres e sua organização já é mais antigo e efetivo. Já caminhamos bons passos, mas a estrada ainda é longa diante de nós. Fico me perguntando quando os homens começarão a clamar por uma masculinidade semelhante à de Jesus. Quanto ao clamor “afro-brasileiro”, ainda não conseguimos nos livrar do pecaminoso hábito da demonização das culturas e religiões africanas. Ainda não criticamos suficientemente, entre nós, a adesão à ideologia novecentista do embranquecimento da população e cultura brasileiras (para nosso espanto e terror, são “evangélicos” que, em pleno século XXI, ofendem, agridem e profanam crentes de religiões afro-brasileiras e seus templos). Atualmente, homossexuais também clamam, e ouvidos evangélicos ouvem ambiguamente esse clamor. Clamor que incomoda até mais do que o clamor das mulheres e negros. Além de tudo, é um clamor que toca numa velha e jamais curada ferida do cristianismo ocidental — a sexualidade e sua relação com o pecado.

Acho que vou parando por aqui. A atenção e a paciência de vocês também têm limites. Está certo que os clamores de fora do Brasil não foram sequer mencionados aqui, ou este artigo teria se transformado em uma enciclopédia teológica. Uma confissão para terminar. Comecei minha atividade como teólogo “brigando” por uma teologia brasileira com um tom universal. Ainda continuo batendo nessa mesma tecla. Até quando seremos tímidos repetidores das teologias dos dominadores deste mundo? (Exagerado, não é? Mas o exagero é um bom artifício retórico...) Vocês viram que ouço os clamores numa seqüência específica — do universal ao particular, e mesmo que eu tenha dito que não há pretensão de hierarquia neste escrito, ela está presente. Por isso, muitos gritos particulares não foram aqui elencados. Não por que não o mereçam, mas por que meus ouvidos são pequenos demais e meu discernimento tem foco limitado. E eu acho que deve ser assim mesmo. Afinal de contas, eu e você somos apenas membros do Corpo, jamais o Corpo — que é (de) Cristo.

Ah! Só mais uma coisinha pra terminar, e agora termino mesmo. Talvez alguém esteja se perguntando: “Mas, e o clamor dos pecadores por Jesus Cristo”? Quem não consegue perceber que os clamores que listei são clamores por salvação, e pensa que tais clamores são meramente seculares, ainda está muito marcado pelo viés igrejeiro e fundamentalista (provavelmente tal pessoa pense que antes de alguém poder clamar a Deus, precise passar por uma escola doutrinária, para que o clamor seja ortodoxo...). Uma preocupação me persegue desde que me entendo por estudante de teologia: não podemos mais confundir os meios com os fins. Afinal de contas, não aprendemos com os evangelicais do longínquo último quarto do século XX, que a igreja não é o Reino?
* Sesu é a Secretaria de Educação Superior; CNPq é o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico; e Capes é a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior.

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